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quarta-feira, agosto 05, 2009

TEMPOS DE CLARIFICAÇÃO

Em tempos que já aí estão e que ainda hão-de vir, de demissões, de distanciamentos, de clarificações, e, quem sabe, de reconstrução e re-organização do quadro e do espectro político partidário (Nota 1), a nível local e nacional, considero oportuno perder o pudor e divulgar a minha carta de demissão do PS, enviada à Secção Concelhia da Figueira da Foz, com data de 4 de Dezembro de 1997 (registada, e com aviso de recepção...) . António Guterres era o Primeiro-Ministro da altura. Rezava assim :

Figueira da Foz, 4 de Dezembro de 1997

Exmºs Senhores :

Venho, pela presente carta, apresentar formalmente a minha demissão do Partido Socialista.
Julgo haver cabimento para, neste momento, acrescentar alguns breves comentários.
A minha militância e a minha intervenção na vida local do Partido Socialista estavam desde há bastante tempo reduzidas a quase nada. Fiz duas incursões visíveis pela actividade partidária nos idos anos de 1985 e de 1993. Com muita frustração e doloroso desencanto. Das duas vezes pude verificar como actuava, na prática, o bem controlado e poderoso aparelho partidário da secção concelhia do PS . Serviu-me de lição e desisti de novas tentativas.
Entretanto, no meu juizo crítico, a acção política do PS na gestão municipal da Figueira da Foz ia-se revelando cada vez mais negativa e ineficaz. Priveligiava a obra de fachada acessória em prejuizo da obra essencial. Prometia planos de 30 milhões de contos para depois realizar 10% do prometido. Permitia a descontrolada explosão de cimento armado por todo o tecido sub-urbano da cidade, para satisfação de gulosos interesses imobiliários. Revelava planos para um magnífico aeroporto, mas muito pouco se empenhava junto do Governo central pela ligação da Figueira da Foz à auto-estrdada A1 . Planeava uma enorme central incineradora de lixos, mas nada fazia para iniciar a mais trivial recolha selectiva de resíduos urbanos. Cobria vastas áreas com vistosas praças, amplas rotundas e lindos relvados, mas deixava a cidade e o concelho atrasados em matéria de saneamento básico e de tratamento de efluentes domésticos.

Por outro lado, quanto ao seu modelo de comportamento no plano da ética política, cada vez mais aquela acção política foi revestindo muitos dos mais condenáveis aspectos e efeitos perversos verificados a nível do poder central, durante aquilo que foi então designado pelo estado laranja. A minha identificação pessoal e política com tal modelo foi-se por isso reduzindo, até deixar praticamente de existir.
Não obstante, fui mantendo a minha filiação. Um pouco por inércia e por atavismo ideológico. É que mantinha ainda acesa uma pequena chama de esperança de que, a nível nacional, o PS tivesse comportamento diferente. Esperei para ver como seria então o Partido Socialista no Governo nacional.

Dois anos já deram para concluir que o PS, quando no poder, lança às urtigas e renega o que apregoou quando estava na oposição. E imita o pior do PSD no último período em que este partido exerceu o poder. Depois de, com inteira razão, tanto ter criticado o PSD no Governo pelo clientelismo, por eleitoralismo primário, e pela abusiva utilização do aparelho do Estado, aí está o Governo PS a comportar-se exactamente da mesma forma. Eis que, por exemplo, contempla milhares de “boys” com apetitosos “jobs” e inerentes mordomias, entre assessores de gabinetes ministeriais, gestores de empresas públicas e funcionários da administração regional.

No plano da gestão corrente, o Governo PS tomou opções absurdas e irresponsáveis, com as quais de todo não me identifico, tais como, para citar apenas algumas, as relativas à barragem de Fozcoa, às portagens da CREL, à suspensão das propinas universitárias, às da indisciplina e da desmobilização reinantes nas forças policiais, ao descontrolo das despesas da saude, ao negócio da Autodril, ao toto negócio. Ao mesmo tempo, vai alienando todo o tecido de empresas e serviços básicos do sector público, cedo ou tarde caido nas mãos de capital estrangeiro, em nome de um pragmatismo inspirado no mais serôdio liberalismo económico, mas com o objectivo de meter nos cofres públicos uns milhões de contos com os quais se deleita e embala os portugueses num laxismo despesista, visando uma popularidade imediata.
Tendo feito da regionalização, irresponsavelmente, uma das bandeiras da campanha eleitoral, o PS parece reconhecer agora que a ideia é um rematado disparate e que se meteu numa grande alhada. Finge que faz mas não faz, assobia para o ar, e enreda-se numa monumental embrulhada jurídica da qual não sabe agora como vai sair.
O Governo do PS erigiu o consensualismo como modelo de governação, e o diálogo como fim e não como mera metodologia. Desdobra-se a anunciar planos, a promover amplos debates nacionais e a criar comissões e conselhos consultivos. Para os quais, naturalmente, vai nomeando mais uns quantos boys. Evita por isso encetar quaisquer reformas que belisquem aquele consensualismo. Governa segundo as sondagens e flutuações da opinião pública, e à medida das pressões corporativistas dos grupos económicos que, no momento, podem fazer mais alarido. Isto é, não governa. Limita-se à gestão corrente, e a orientar a sua acção poliítca segundo critérios e segundo uma lógica de manutenção a todo o custo, do estado de graça, primeiro, e do próprio poder, depois.
Não se estranhará assim que aquele estado de graça vá perdurando, num clima morno, descomprimido, sem grandes crispações, conformista com a requentada retoma da teoria do oásis . Clima susceptível de criar ao Governo, ao PS, e a grande parte do eleitorado, a autista ilusão de que, para já, tudo vai bem, e que depois se verá.
Deixou assim de haver razões para prolongar por mais tempo o benefício da dúvida que, talvez com alguma ingenuidade, decidira conceder. A médio prazo, o PS vai ser muito penalizado com esta estratégia. O pior é que Portugal vai ser muito penalizado.

Mantenho fidelidade aos princípios e valores éticos e sociais da democracia avançada, e daquilo que convencionalmente se tem designado por esquerda. A continuidade da minha filiação formal no Partido Socialista, mesmo que distante e silenciosa, tornar-me-ia mais cumplice com o seu comportamento ético-político quando no poder, e mais responsável, por omissão, pelas consequências que a sua acção governativa acabará por fazer recair sobre o povo português. Não desejo por tal ser responsabilizado pela minha consciência.
São fundamentalmente estas razões porque apresento a minha demissão do Partido Socialista.
Com os meus melhores cumprimentos,
Nota 1
Não é nada que não houvesse já acontecido e sido feito, nos últmos 50 anos, em França, com a 5ª República; em Itália, depois da operação "mani puliti" ("mãos limpas") ; e na Espanha pós-franquista, com o desaparecimento da USD de Adolfo Suarez.

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