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quinta-feira, agosto 02, 2012


A Lei dos compromissos e os orçamentos municipais 
(publicado nas edições de 27.Abril.2012 e de 4.Maio.2012 do semanário “O Figueirense”)


É bem conhecida a baixíssima qualidade da legislação portuguesa, tanto quanto ao seu conteúdo, como quanto, sobretudo, à forma como é redigida e dada a conhecer aos cidadãos.
Penso que poucos conseguirão resistir a dar uma boa gargalhada ao ler em Diário da República textos legislativos tão labirínticos, deliciosos e divertidos, como o que, por exemplo, começa assim.

“Artigo 1.º

Objeto
A presente lei procede à décima nona alteração ao Decreto -Lei n.º 15/93, de 22
de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de
estupefacientes e substâncias psicotrópicas, alterado pelo Decreto-Lei n.º 81/95,
de 22 de abril, pela Lei n.º 45/96, de 3 de setembro, pelo Decreto -Lei n.º 214/2000,
de 2 de setembro, pela Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, pelo Decreto –Lei n.º
69/2001, de 24 de fevereiro, pelas Leis n.os 101/2001, de 25 de agosto, e 104/2001,
de 25 de agosto, pelo Decreto –Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro, pelas Leis n.os
3/2003, de 15 de janeiro, 47/2003, de 22 de agosto, 11/2004, de 27 de março,
17/2004, de 11 de maio, 14/2005, de 26 de janeiro 48/2007, de 29 de agosto,
59/2007, de 4 de setembro,18/2009, de 11 de maio, e 38/2009, de 20 de julho, e pelo
Decreto -Lei n.º 114/2011, de 30 de novembro.
Em geral, a legislação portuguesa apresenta-se na forma de um intrincado labirinto, sendo frequentemente exasperante interpretá-la e circular por entre os seus rendilhados escaninhos de complicadas e pindéricas tiradas de literatura. Justo será suspeitar que ela é feita e redigida assim, por jurisconsultos ilustres, para que depois esses mesmos jurisconsultos, ou colegas da mesma corporação profissional, possam ser contratados ou consultados para interpretar a legislação que com tanta habilidade redigiram.
E não será muito de espantar que assim suceda. Porque, sendo a preparação das Leis, teórica e constitucionalmente, da competência do Parlamento Português, neste tomam assento muitos deputados cujos conhecimentos da língua portuguesa deixam muito a desejar. Sobretudo os deputados que a tal função chegaram através de uma bem sucedida “carreira jota”, com turbo-licenciaturas arrancadas em certas universidades privadas, e que por vezes não sabem distinguir “há”, o tempo verbal, do “à”, contracção entre preposição e artigo; e que escrevem “à” quando devia ser “há”, ou vice versa…
A Lei nº 8/2012 é designada por Lei dos Compromissos, e pretende estabelecer regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas.
Para entender a quem se aplica a dita Lei, é necessário ler várias vezes o seu artigo 2º, mesmo por quem, como eu, tenha a presunção de não estar num grau muito baixo de iliteracia. Depois de conjugar a sua leitura com mais uns outros artigos de umas quantas Leis, lá pude concluir, salvo melhor opinião, que ela se aplica às autarquias locais, consideradas como “entidades” para efeito de interpretação de alguns dos seus artigos e alíneas.
A Lei nº 8/2011 irá ainda ser regulamentada. Mas o que nela está estipulado, já dá para suspeitar que vai redundar numa interminável confusão normativa e interpretativa, indo fazer em água as cabeças dos muitos dirigentes que, como os autarcas, vão ter que dar cumprimento a alguns dos seus preceitos, de tal forma são confusas as redacções destes.
Cada tomada de decisão, na gestão do dia a dia, vai ter de passar a ser precedida de complicadas contas, consultas, comparações, análises, pareceres, autorizações, e tutti quanti, para se calcular se há ou não conformidade entre os “fundos disponíveis” e a “assunção de compromissos”. Vai ser bonito.
Mas não há razões para desesperar. Nem tudo será mau. Os advogados, os consultores, e muitos conhecidos escritórios de juristas, vão ter muito que fazer, e muitos honorários a apresentar.
O disposto na Lei dos Compromissos, não é nada mais, afinal, que uma nova e mais difícil regra de aplicação da elementar regra da cabimentação. Só que esta se refere à obrigatoriedade de haver prévias análises de conformidade entre os montantes das concretas despesas decididas, e as estimativas feitas numa base anual (ou seja, no Orçamento ordinário anual). Enquanto que aquelas novas regras da confusa Lei vão obrigar a difíceis análises prévias das conformidade entre as decisões dos “compromissos” assumidos, por um lado, e os montantes de fundos disponíveis calculados num curto prazo, nada mais de 3 meses. As novas regras obrigam e responsabilizam, de forma ameaçadora, não apenas titulares de cargos políticos (os autarcas…), gestores e responsáveis pela contabilidade, como igualmente, (pasme-se!...) “os agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso possua (…) o correspondente número (…) válido e sequencial (…) “
Eu compreendo as razões que levaram o Governo e o Ministro das Finanças a imporem este tipo de legislação. Elas têm a ver com as dificuldades que sentem em controlarem e conterem a irresponsável incontinência despesista de muitos autarcas e muitas autarquias. Mas creio que a emenda será bem pior que o soneto, podendo conduzir a uma grave paralisia da governação autárquica. Ou então, não se cumpre a Lei, como também costuma acontecer, com frequência.
A indisciplina reinante e a situação a que se chegou nas autarquias, no seu conjunto, acumulando calotes (não a entidades bancárias…) de muitos milhares de milhões de euros, não é causada por quebra da regra da cabimentação, que em geral é formalmente cumprida. Só que de nada serve cumprir essa regra da cabimentação, quando os orçamentos municipais, relativamente aos quais o prévio cabimento é  confirmado, são sobre estimados e empolados do lado das receitas, em previsões delirantemente insensatas.  Como tem acontecido e ainda acontece por parte de muitas Câmaras Municipais, designadamente na Figueira da Foz.
Claro que com um Orçamento com receitas daquele tipo e escala, haverá quase sempre cabimento para uma despesa que se pretenda autorizar. E quando não haja dotação disponível, especificamente nesta ou naquela rubrica da despesa, a solução é fácil : faz-se uma alteração orçamental, e logo se arranja cabimento.
Há tempos, já opinei que há um nexo causal entre os sistemáticos baixos índices de execução dos orçamentos municipais e o elevado nível de endividamento dos municípios. Estendo agora esse nexo causal à apresentação da dita Lei dos compromissos.

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