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quarta-feira, maio 14, 2008


ONDE É QUE ESTAVA NO 14 DE MAIO DE 1958...

Há 50 anos, no dia 14 de Maio, o General Humberto Delgado era triunfalmente recebido no Porto. A foto acima foi tirada da varanda da sede portuense da sua candidatura , na Praça Carlos Alberto, por cima de um café . Devo lá estar, perdido na multidão, ao fundo da fotografia.
Por aquele tempo, com 17 anos, mas com ar de um liceal de 13 a 14 anos, pouco ou quase nada me interessava por política. Não obstante, já tivera um leve despertar, nos dois anos em que frequentara o 6º e 7º ano do Liceu, em Vila Real, um pouco por efeito do convívio em casa do Eurico Figueiredo.
Por aqueles dias do meio de Maio, caloiro da Faculdade de Ciências do Porto, a minha atenção concentrava-se no estudo intensivo para o exame de frequência da cadeira de Mineralogia Geral, que teria lugar dali a uns escassos dias.
Soubera vagamente da existência de uma candidatura de um general a quem o “Diário da Manhã” , orgão oficial da União Nacional, havia chamado de general coca cola, e insinuado que estava apoiado pelos americanos. Lera no “Primeiro de Janeiro” uma pequena notícia a duas colunas, no fundo de uma qualquer página, que tinha havido um incidente em Lisboa, em que o General dissera uma frase afirmando que iria demitir Salazar. Conhecera mais desse incidente, depois famoso e histórico, através de editoriais e comentários indignados do dito “Diário da Manhã” que estava sempre disponível para consulta sobre a mesa do bar do Centro Universitário, à Rua da Boa Hora. Jornal a que chamávamos “ o dobradinho”, percebe-se bem porquê...

Uns dias antes , observei, em algumas montras da baixa portuense, umas pequenas folhas de papel informando que o General Humberto Delgado chegaria ao Porto no dia 14 de Maio, vindo de Lisboa, no comboio Foguete da tarde . Picado pela curiosidade, mas tendo necessidade de intensificar o meu estudo para a próxima frequência, procurei programar a minha vida para esse dia. Ia estudar, no meu quarto alugado da Rua da Torrinha, até cerca das cinco e meia da tarde. Faria depois uma pausa e iria até à Estação de São Bento, onde comprava um bilhete de gare, e ia ao cais ver a chegada do comboio Foguete para ver o aspecto do tal general. Depois, tomava um eléctrico das carreiras 4 (para Pereiró) ou 6 ( para o Monte dos Burgos), pagava os seis tostões da praxe, iria jantar à cantina da Rua do Rosário, após o que regressaria a casa para continuar a estudar. Era esse o meu plano para a tarde desse dia.

Com ele em mente, saí de casa às cinco e meia, percorrendo toda a longa rua de Cedofeita. Estranhei que pela rua fora muita gente circulasse a pé, apressada . Chegado à Praça Carlos Alberto comecei a encontrar cada vez mais gente. Na Praça dos Leões, a multidão engrossara. Fui descendo até à Torre dos Clérigos, cada vez com mais dificuldade em abrir caminho por entre as pessoas. Cheguei até 50 metros abaixo da Torre, e daí não consegui furar. Olhando para baixo, na inclinada rua dos Clérigos, via um mar contínuo de gente, uma multidão compacta, que enchia, tanto quanto a vista podia enxergar, toda a parte sul da Praça da Liberdade, prolongando-se para além do meio da então designada rua de Santo António . Por ali fiquei, abismado por tal gigantesco cenário, que nunca vira antes.
Passado um tempo, ouve-se lá em cima, onde eu estava, um bru-à-à e um clamor imenso, e vê-se a multidão cá em baixo a agitar-se. Lentamente, aproximava-se um automóvel descapotável, com um vulto fardado de militar, em pé, agitando os braços, fazendo a continência e erguendo os punhos cerrados. Na frente da viatura, dois agentes da PSP, meio surpreendidos e assustados, montados sobre motocicletas, tentavam abrir um pequeno corredor por onde o carro com o General, em pé, ia avançando lentamente e com dificuldade.
Quando o General se aproxima mais, avisto-o a poucos metros, inebriado por todo aquele esmagador entusisamo . Também inebriada, a multidão empolgada levanta e agita os braços, aplaude vibrantemente e começa a gritar “ Liberdade...Liberdade”. Um arrepio percorre-me a espinha, fico possuido de um nervoso miudinho, compartilhando a loucura da gigantesca multidão. De repente, dou comigo também arrebatado , a levantar o punho, a bater palmas e a gritar “Liberdade..Liberdade !...”.

A multidão compacta segue o carro do General, subindo a rua dos Clérigos, a caminho da Praça Carlos Alberto. Sigo-a, arrastado por ela, andando tão depressa quanto posso, não dá para correr. Na Praça, fico já distante da varanda onde, passado algum tempo, o General voltará a acenar à imensa mole de povo que a fotografia ilustra. Fazia-se tarde, tive que ir e lá fui jantar à cantina universitária, onde era raro discutir-se política, e onde os estudantes presentes apenas trocaram uns breves e anódinos comentários sobre o passado naquela tarde.

Depois de jantar, não resisti, adiando por mais um tempo a hora de retomar o imperioso estudo para o exame. Acompanhado de mais dois colegas, regressei à baixa do Porto, tentando passar pelo Hotel Infante de Sagres, onde sabia ter-se hospedado o General. Mas encontrei ruas cortadas, pequenas multidões dispersas na zona do Coliseu do Porto, toda a área da baixa num pandemónio de fugas e correrias, soldados da GNR a cavalo, façanhudos polícias de capacete e aspecto ameaçador, armados de espingardas . Cauteloso, depois de vividas as emoções da tarde, resolvi regressar a casa . Impunha-se continuar o estudo até à madrugada.

No dia seguinte, despertei ansioso por volta das nove da manhã. Queria ver o que iam noticiar os jornais do Porto . Imaginava já os seus títulos a toda a largura da primeira página, com fotografias impressionantes das multidões do dia anterior. Interrogava-me sobre como iriam a opinião pública e os governantes reagir, o que iriam dizer, o que iria depois acontecer.
Às nove e meia, corri para a pequena loja da rua da Torrinha onde se vendiam jornais. Pedi “ O Comércio do Porto” ou “ O Primeiro de Janeiro” . Irónico, o homem informa-me que não tinham ainda chegado. Como assim, perguntei, decepcionado. O homem encolheu os ombros e balbuciou um resmungo. Comecei a perceber o que se passava. Voltei pelas onze horas. Os jornais já tinham chegado. Peguei ansioso no “Primeiro de Janeiro”. Num canto ao fundo da primeira página, com título a duas pequenas e singelas colunas, sem quaisquer fotografias, lia-se que o General Humberto Delgado havia chegado ontem ao Porto. E quase nada mais .
Senti-me de novo possuido de um nervoso miudinho, desta vez de estupefacção, de indignação e de revolta. Como era possível ?. Cheguei a dirigir a minha ira mental contra o próprio jornal. Se houve intervenção da Censura política, mais valia não terem publicado nada, a darem a notícia daquela maneira e com aquele ridículo e indecente relevo.

Sem nada saber sobre o que entretanto se passava em Lisboa ( a que Humberto Delgado havia entretanto regressado, recebido triunfalmente em Santa Apolónia ), ao fim da tarde do dia 15 de Maio dei de novo uma volta pela baixa portuense. Sentia-se um clima tenso, pequenos grupos de 3 e 4 pessoas juntavam-se pelas esquinas e pelos passeios , havia muitos mais polícias que habitualmente. Junto da pastelaria Ateneia, na Praça da Liberdade, vi um maior ajuntamento de pessoas que discutiam, meio em surdina. Aproximei-me e descobri o que acontecia. Numa parede do local, existia uma vitrina onde era costume colocarem um exemplar do “Diário da Manhã”. Alguem tinha partido o vidro à pedrada. O jornal ainda lá ficara, e nele podia ler-se, a toda a largura da sua primeira página : “ Constitui um rotundo fracasso a visita do General Delgado ao Porto “. Fiquei siderado com tamanha lata, revoltado com tamanha mentira e falta de vergonha.
No dia seguinte, passei pela sede da candidatura do General. À entrada, perguntei se me podiam dar umas dezenas de panfletos de propaganda . Deram-me cerca de cem. No fim de semana, fui a Viana no comboio que saía de São Bento às 7 da tarde . Pelo trajecto, escondido na carruagem, quando o comboio largava de uma estação, ia deitando pela janela fora uns quantos exemplares dos folhetos com o nome e a fotografia do General, espalhando-os ao longo do cais que ia ficando para trás.

A partir daqueles dias, nada seria mais como antes na vida política portuguesa.
Começara um tempo novo para Portugal. Para mim também.

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